Não era exatamente o vazio da casa, que ainda não estava mobiliada. Não era o vazio das ruas, que vagavam madrugada adentro... Era um vazio repleto de imensidão. Era o vazio...
Não se sabia se realmente era, não sabia se sabia. Era um vento que rolava, era um tempo que nunca tinha um fim certo... Era a incerteza... Era o não querer saber, com o não poder saber. Apenas era! Mas ao certo, o incerto é o que era.
Ana, de short curto e moletom, protegia-se de um frio abafado que vinha do vento. Sentara na sacada, sobre o chão gelado, e acendeu seu cigarro. Via o mundo passar pelo vazio das ruas, ali pelo décimo quinto andar. Ali por onde nem o bem e nem o mal passavam. Seguia com os olhos os carros que passavam a longo espaço de tempo, e reparava que do outro lado, no outro prédio, havia alguém assistindo televisão na sala.
Não sabia o que realmente pensar, apenas tragou da fumaça, e se perdeu na imensidão do vazio na sua mente. E por um instante pode se reparar como um ser pensante, e notara o colorido da televisão do outro prédio, e viu que sua vida fazia contraste com aquelas cores tão chamativas. E sentira uma leve inveja que lhe consumia e fazia de si, mais ainda, um ser embasado na ausência de cores.
Submersa em seu mundo, Ana não era mais um alguém. Ana era o bem acima, era o bem abaixo, era o equilíbrio, era o meio, era o começo, era o fim. Seguindo, a cada referencial, um modo diferente de ser. Os pontos de vista que a faziam um ser além do ser que ela podia se enxergar. Não podia se contentar em ser o que era... Tinha que submeter ao modo como os outros a desejavam.
Talvez fosse, talvez não... As probabilidades, as dúvidas, as incógnitas, os questionamentos... O mundo passava pelo mundo inteligível de Ana. Sentia-se imersa em outro alguém, em outro momento. Enquanto tragava e sentia o tabaco percorrer o seu mundo interior, como algo íntimo, como parte de si. Hesitava soltar a fumaça, como se temesse perder a parte pequena e fugaz de sua certeza.
Não podia mais pensar, não sabia se um dia havia pensado. Para Ana pensar era muito difícil; e o mundo, o seu mundo, era muito mais do que um raciocínio... Era a leveza do viver, e não a certeza da razão; era o toque do sentir e não a frieza do dever. Ana pensava que não pensava, mas era tudo calculado para não ter que raciocinar; era raciocínio lógico da irracionalidade.
E por um impulso, Ana gritou sem motivo... Como se o nada tivesse expandido tão subitamente que ela não pudesse se conter. O grito servia-lhe como prova mesquinha de sua existência. O apartamento parecia tão maior sem os móveis, e ela parecia tão pequena sem ninguém.
As paredes azuis e o teto branco não lhe traziam paz. As bromélias, que comprara pela manhã, e que colocara no canto contrário ao que estava na sacada, não lhe traziam ânsia por continuar, embora se fizessem tão vivas, tão belas, tão cheias de si...
Ana não sabia, apenas não sabia... Não sabia se estava alegre ou triste, não sabia se estava frio ou quente, se era sonho ou realidade, se era seu mundo ou o mundo concreto, se era euforia ou angústia, se era presente ou passado. O presente sem aconchego já é passado vazio. Sentiu seu mundo aos seus pés, e sentiu que pela primeira vez controlava a situação. Uma situação distinta, diferente, apenas sua. Passou a mão pelo cabelo, como se tentasse arrumá-lo, e o prendeu. Apanhou mais um cigarro, e colocou o maço no bolso de trás de seu short, colocou os chinelos e caminhou pelo chão sujo de poeira, e com um leve movimento tentou se livrar da sujeira na sua roupa.
Desceu as escadas, ignorando o elevador parado e, passo a passo, sentiu-se inferior... Inferior aos de cima, inferior aos de baixo... E lentamente, dirigiu-se ao térreo, e chegara à calçada. E ali, na rua, ela se sentiu como se vigiada por alguém lá de cima, por alguém como ela.
Agora, ela fazia parte do mundo. Era mais um ser na terra, indiferente a sentimentos, a vontades, a sonhos, a atos, ações, realizações. Agora, se misturava pelo vazio e pelos outros. E submersa nesse tempo desse mundo, já não havia situação distinta, já não havia mais nada.
E caminhara contra o vento, fazendo sua franja voar para todos os lugares, por todos os movimentos. E assim, ao menos uma parte dela podia se sentir livre. Na sede por libertação, soltara seu cabelo, e retirara seu chinelo... Pode, por um momento, sentir novamente o mundo sob seus pés...
Ana, pode perceber e sentir tudo o que lhe trazia paz, e tudo o que lhe tirava essa mesma. E era assim, com os pés no chão, que ela queria ir para a guerra... Uma guerra de ela contra ela; entre o seu querer e o seu poder pensar; entre o seu sentir e o não querer sentir... Ana não queria a paz calculada, queria o calor e a euforia que os momentos poderiam lhe oferecer...
... E de súbito, um vazio repleto se fez presente e... Pobre Ana! Que num ato de liberdade, caminhava com uma alegria estampada pelo rosto, e em apenas alguns milésimos de segundo ouviu um barulho e algo cravar no seu peito. Indo de encontro ao seu vazio e à sua imensidão... Indo de encontro à sua euforia e à sua angustia, ao seu sonho e à sua realidade, ao mundo e ao seu mundo, a sua alegria e a sua tristeza, ao seu presente e ao seu futuro, deixando em Ana apenas um passado.
Pobre Ana! Tão perdida em seus pequenos encontros. Pobre Ana! Que teve um fim tão certo entre a incerteza de seus dias. Que teve em seu coração uma bala perdida, mas tão certeira.
Ana, com olhos abertos, na noite unânime, já não sente a insuportável leveza do ser.
Um comentário:
Ô, Camila! Cadê a senhora? Eu venho mais aqui do que você, uai!
Quero ler mais textos seus.
Um beijo!
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